José Morais, Adjunto de José Mourinho, parte a loiça na Arábia Saudita

sem nome      “Na Arábia Saudita, um presidente trouxe um guarda-redes sem avisar. Fui lá acima, atirei o computador dele ao chão e gritei: Eu sou o quê?”

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José Morais, 53 anos, ficou conhecido como o adjunto de José Mourinho, mas é como treinador principal que se quer afirmar cada vez mais. Depois de ser forçado a deixar pai e mãe em Angola, cresceu na zona de Vieira de Leiria, onde se tornou jogador, Serviu como voluntário na Força Aérea, para fugir de casa da familia de acolhimento, mas foi no curso de educação fisica que encontrou rumo para a vida. Esteve 10 anos na formação do Benfica, como…

© João Silva Tribuna
Nasceu em Angola, é filho de um português e de uma angolana. Veio para Portugal quando?
Em 1974, ainda tinha nove anos. O meu pai é de Vinhais, perto de Bragança, foi para Angola com 15 anos e tornou-se responsável por uma fazenda de café, que era de um tio dele, no interior de Luanda. Chamava-se João e foi lá que conheceu a minha mãe, Esperança, nativa daquela zona, de uma senzala perto da fazenda. Segundo reza a história a minha era das mais bonitas da zona.
Tem irmãos?
Tenho uma irmã, a Alda, mais nova três anos e que é enfermeira em Vinhais, nasceu também em Angola.
Da infância em Angola, o que mais recorda?
O que vem logo à cabeça é o local onde nasci e as chuvas. Quando vinham aquelas chuvadas nós, crianças, despíamos logo a roupa para andar a correr debaixo de chuva, rebolar no barro encarnado e com a chuva limpar outra vez o corpo. Era uma espécie de jogo. Quando de repente a chuva parava e ficavas todo sujo… estavas lixado porque ias levar da mãe. O jogo era precisamente antes que a chuva parasse tu tinhas que estar limpo (risos). É uma das memórias mais fortes que tenho de criança.
Há algum cheiro, um sabor, um som que ainda hoje o remeta logo para Angola?
Há. Cada vez que vejo café em grão vejo imediatamente as plantações do café na fazenda. Logo a seguir a esta imagem volto outra vez atrás e vejo os grãos de café, que não é negro mas vermelho, na fazenda, espalhados naqueles enormes cafezais e lembro-me da brincadeira de atirar-me para cima dos grãos de café, que é uma sensação engraçada.
Fez a escola primária em Luanda?
Sim, ainda me lembro do nome da escola, era a Anangola, na zona da Vila Clotilde e Vila Alice. Lembro-me dos keds (ténis) brancos e do uniforme de educação física que era o calção e a camisola branca. Tudo branquinho.
É lá que começa o futebol?
Acho que começa na altura em que tinha uns quatro, cinco anos e ainda vivia com a minha mãe lá perto da fazenda. Já aí a brincadeira era toda à volta da bola. Mas não tinha clube. Depois quando fui para Luanda, aos cinco anos, já via futebol mas não no sentido de ter ídolos. Só quando vim para Portugal é que comecei a ter ídolos.
Vai viver para Luanda porquê?
Não é um momento feliz. Saio da minha mãe para ir viver com uma senhora a quem eu chamo tia Zulmira, que ainda é viva, e com a qual vim de lá para Portugal. No fundo deixei toda a família e todos os amigos que tinha para ir para Luanda. Há duas versões que só vim a saber mais tarde. Uma era a versão de que era melhor ir para Luanda para estudar e a segunda versão era que a minha mãe fez pressão para que eu e a minha irmã saíssemos da zona da fazenda, que era fora de Luanda, porque nós éramos filhos de um branco e não éramos totalmente negros. Na guerra da independência havia já alguns movimentos no mato, fora de Luanda, que matavam os filhos dos colonos. E a minha mãe, com receio que isso acontecesse, fez força para que eu saísse dali.
A senhora a quem passou a chamar de tia Zulmira era quem?
Era professora primária em Luanda. Fui para casa dela porque ela, na altura, não tinha filhos. Era amiga de um amigo do meu pai e foi ele que sugeriu que eu fosse para casa dela.
Ainda ficou quatro anos em Luanda. Continuava a ver os seus pais de vez em quando?
Não. Lembro-me que a minha mãe me uma ou duas vezes, não me lembro mais. As memórias que tenho da minha mãe são muito vagas.
Ela não veio para Portugal?
Não. A relação com o meu pai a partir de um certo momento passou a ser diferente, por questões entre eles que tinha a ver com ter filhos ou não ter filhos. Eles nunca viveram verdadeiramente juntos.

© D.R. José Morais com sete anos
Vem para Portugal com essa “tia” e foi viver para onde?
Venho primeiro para Lisboa, no movimento dos retornados, porque começou a haver um clima de guerra dentro da própria cidade de Luanda. À noite vi balas a passar de uma lado para o outro. Lembro-me que, quando ouvia as balas e as bombas, escondia-me debaixo da cama. Venho para Lisboa, fiquei na Ajuda, porque havia um irmão dessa minha tia que já tinha vindo de Cabinda.
Qual é a primeira memória que tem de Lisboa?
Como criança estava fascinado, sempre fui muito curioso por aviões. Lembro-me que quando saí da fazenda para ir para Luanda deram-me 40 escudos e eu disse “vou comprar um avião com estes 40 escudos” (risos). E porque é que eu queria comprar um avião? Porque o meu tio que era o dono daquelas fazendas, quando vinha visitar as fazendas vinha numa avioneta que pousava numa pista de terra. E da parte de baixo da aldeia, perto da fazenda, tu ouvias e vias quando a avioneta começava a aproximar-se e nós, miúdos, íamos todos a correr para ver a avioneta a aterrar. Por isso eu queria também o avião.
Mas voltando a Portugal. Quais as primeiras memórias?
O aeroporto, muita gente a sair e depois o que me fez confusão foi o frio. Comecei a sentir frio pela primeira vez e como não tínhamos roupas, tínhamos de passar tempo em filas para receber apoios. Lembro-me de um casaco que me deram, tipo esquimó, com um carapuço, muito quentinho, tenho a imagem desse casaco.
Ficou quanto tempo em Lisboa?
Creio que não foi mais do que dois ou três meses. Depois fomos para Vieira de Leiria, porque apesar dessa minha tia já ter nascido em Luanda, a família dela era oriunda daquela zona. O pai dela era pica-limas na fábrica de limas em Vieira de Leiria. Fomos viver para uma espécie de dispensário.
E a sua irmã?
A minha irmã foi com os meus tios verdadeiros, irmão e irmã do meu pai, para Vinhais. Mas só fiquei a saber passado um tempo. Eu só ia passar férias para lá, para Vinhais. Fiquei sempre em Vieira de Leiria. Quando cheguei, fui para o primeiro ano do ciclo.
Houve um choque?
Acho que o primeiro choque foi a sensação de que havia uma diferença entre seres branco e seres negro. Pela primeira vez começaram a chamar-me preto. Eu nunca me tinha apercebido dessa diferença, porque nunca ninguém me tinha chamado antes isso. Só a partir dali é que comecei pensar “de facto sou diferente e sou uma minoria”. Isso e ser conotado como retornado, que de facto não era. Estas foram as coisas menos positivas. O resto sempre encarei como descobertas, coisas novas.

© D.R. José Morais (à direita) com a tia-mãe e dois amigos na escola, em Luanda
E o desporto, o futebol, como começa?
Quando vou para Vieira de Leiria, a bola passou a ser um amigo. Eu passava muitos momentos sozinho, acompanhado pela bola. Por isso fazia coisas com a bola. Até começar a sentir que tinha amigos mais próximos a bola foi sempre um escape. Também passou a ser uma espécie de bicho de estimação ou alguém que tu sabes que não te faz mal e está sempre lá. Entretanto os meus “tios” acabaram por encontrar uma casa na Praia da Vieira e fomos morar para lá. A casa era perto do GD Praia da Vieira e comecei a aparecer lá. Só que os iniciados tinham 14 e 15 anos e eu tinha uns 13 anos e era muito pequenino. Só me punham a jogar a 10 minutos do final mas eu fazia dribles, as pessoas começaram a reparar em mim e a chamar-me “Jordão”. Eu jogava a médio direito atacante, fazia fintas e golos. Entretanto, um dos treinadores do Industrial Desportivo Vieirense morava na Praia e diz-me para ir para lá.
Como surge o U. Leiria?
Já foi num momento em que eu era um dos melhores jogadores do Vieirense e fazia golos. O Sr. Freitas, que era uma pessoa de família, muito benfiquista, fez-me um convite para fazer uns testes no Benfica. O Sr. Arnaldo Teixeira é quem me recebe. Eu era juvenil, faço um treino, fiz dois golos e o Arnaldo Teixeira queria chegar a um acordo, mas quando chegamos ao momento dos papéis, a minha data de nascimento é 27 de julho de 1965 e nessa altura se nascesses depois de 1 de agosto pertencias à categoria inferior, se nascesses antes pertencias à categoria superior, o que quer dizer que eu já era júnior no ano a seguir, por uma diferença de quatro dias. Quando eles perceberam que era já júnior disseram para eu ir treinar com o Sr. Ângelo Martins, passado um mês, nos juniores.
Não correu tão bem.
Não, porque a minha capacidade era mais do que suficiente para a categoria inferior, mas nos juniores já era diferente. Lembro-me que fiz dois treinos, e perguntaram-me se tinha alternativa e como já tinha havido interesse do U. Leiria…
Foi uma grande desilusão não ter ficado no Benfica?
Foi porque era uma coisa que eu queria muito. Já era benfiquista naquela altura, embora me chamassem Jordão e o Jordão era do Sporting.
Tornou-se benfiquista porquê, tem ideia?
Eu acho que era benfiquista porque na família havia um primo que era benfiquista. Também tinha na família emprestada um sobrinho da minha tia, que era o Santana, que jogou no Benfica como defesa central. Ele era mais velho do que eu, eu tratava-o por primo. Acabou por ser uma referência. Embora eu gostasse do Jordão, do Nené, do Manuel Fernandes, todos esses jogadores.
Esteve no U. Leiria só uma época e voltou ao Vieirense.
Sim, voltei ao Vieirense já como sénior. Eu tinha feito um contrato de sénior com o U. Leiria, mas nesta família emprestada eu tinha várias “guerras” e numa dessas “guerras” decidi que tinha de sair de casa, com 18 anos. Então inscrevi-me para fazer o serviço militar voluntário. Isso não me permitia jogar no U. Leiria. O U. Leiria na altura passou por problemas graves financeiros e eu queria sair de casa. Acabei por ir para a Força Aérea.
Foi para que base?
Fui para Tancos. Fiz lá a recruta e fiquei lá. Pertencia ao grupo da Policia Aérea, porque aquilo era ar livre e havia muito exercício físico.
Nessa altura colocou a hipótese de pôr o futebol de parte?
Não. Sempre quis o futebol. Eu fui para ali mas arranjei maneira de continuar a jogar, depois da recruta. Na Vieira, como me conheciam, só ia à sexta-feira treinar e jogava ao fim de semana, eles dispensavam-me durante a semana.
Esteve quanto tempo na Força Aérea?
Dois anos, praticamente. Cheguei a um ponto em que comecei a refletir sobre a vida, sobre o que queria ou não, que possibilidades tinha. Eu não tinha terminado o 11.º ano, deixei a escola na altura em que fui para tropa.
Já ganhava dinheiro com o futebol antes de ir para a tropa?
Ganhava, mas não era o suficiente. O meu primeiro ordenado foram 12 contos, no U. Leiria.
O que fez com esse primeiro dinheiro?
Acho que comprei uma máquina de lavar para a minha tia verdadeira, de Vinhais.
Nunca quis ir viver para Vinhais?
Quis. A minha irmã estava lá e sentia-me melhor lá, mais integrado, mais dentro da família.
Os tios emprestados não o deixavam ir?
Não era bem isso. Não havia condições para eu ir para lá. Na altura não entendia muito bem o que se passava, mas as circunstâncias não eram fáceis para eles, porque também era uma casa pequena.

© D.R. José Morais com o pai e a irmã
Quando saiu da tropa o que foi fazer?
Eu fui o primeiro classificado do meu curso na FA, ganhei uma medalha de honra, e com tinha grandes qualidades fui para o grupo de instrução militar, ou seja, fui dar instrução aos novos recrutas, na base de Tancos. Como gostava muito de tudo o que era futebol e preparação física, era um dos melhores da seleção da base, onde conheci o Nogueira que depois jogou no Boavista. Portanto, toda a gente me conhecia com talento para o futebol, era muito querido. Entretanto, abriu um curso de instrutores de educação física na base naval do Alfeite; candidatei-me e entrei. Quando tu te candidatas a um curso desses e terminas, tens o compromisso de fazer dois anos mais. Quando fui para ali comecei a pensar no que quero da vida. Entretanto, uma grande amiga minha, que se chama Rita, neste espaço de tempo em que decido ir fazer o serviço militar, ela foi para o ISEF e quando vou fazer aquele curso no Alfeite, ela convida-me para ir a uma festa de estudantes do ISEF. Fui e gostei imenso do ambiente. Saí dali e disse,:não é a tropa que eu quero. Ainda por cima no curso da universidade havia uma equipa de futebol.
Mas não podia entrar no ISEF sem o 12.º ano.
A partir daquele momento decidi que tinha de fazer a disciplina de matemática para completar o 11.º ano e terminar o 12.º, para poder entrar naquela faculdade. E foi o que fiz. Pedi para sair do curso de educação física e voltar à base, para não ter a tal obrigação de ficar mais dois anos na FA. Fui estudar à noite no Entroncamento, terminei o serviço militar um bocadinho antes do final do ano, o que quer dizer que deixava de ter a cama que tinha na base aérea. Na altura, fui jogar para o Ferroviário do Entroncamento, depois o U. Tomar quis-me, mas foi na altura em que eu tinha que acabar o 12.º ano e concentrei-me. Ainda joguei nos Dragões de Alferrarede.
Entrou no ISEF?
Entrei, em 1987. Estudava e jogava no Atlético, cujo treinador era o Norton de Matos. No Atlético pagavam-me 30 contos.
Quando vem para o ISEF fica a viver onde?
Fui viver primeiro para a Ajuda, onde tinha estado quando cheguei a Portugal, até conseguir ter alojamento na residência de estudantes da Cruz Quebrada.
Mas entretanto vai jogar para os Açores, como é que isso acontece?
Os Açores surgem porque depois do Atlético fui jogar para o Penafiel; o treinador era o Carlos Alhinho, eu conhecia-o da universidade, e ele decidiu dar-me uma oportunidade de ir para o Penafiel. Faço a pré-temporada, fui viver para Penafiel, para uma pensão com alguns jogadores. Em Penafiel, em agosto, eu não tinha muitas possibilidades e surgiu a hipótese de jogar no Praiense dos Açores. Pagavam-me ainda mais dinheiro e ia para lá por um ano. Fui. Como jogávamos de 15 em 15 dias no continente, na altura o Praiense estava na III divisão, eu ficava mais um dia para poder assistir às aulas nesse dia.
Gostou dos Açores?
Gostei. Era um meio pequeno. Este trajeto de família dá para perceber que eu não tive uma família que funcionava como o ideal de família que eu tinha na cabeça e no coração. Para mim, os amigos foram sempre uma família. E os Açores era um meio pequeno onde as pessoas conheciam-se quase todas umas às outras. Gostei por causa disso, porque eram todos muito próximos.
Depois dos Açores, regressa e termina o curso. O que faz a seguir?
Como era um dos alunos do curso que tinha experiência como jogador, o Jorge Castelo, que era professor na universidade e também treinador no Benfica, falou-me na possibilidade de fazer um estágio no Benfica. Interessei-me. Era futebol, era o Benfica, o meu clube, por estar a estudar comecei a ter ideias relativamente ao treino; interessava-me o treino, a estratégia, por isso percebi que era uma das minhas saídas profissionais.
Mas não sonhava em ser jogador?
Eu tinha sonhos maiores enquanto jogador mas como não via que por ali fosse chegar onde queria. Entre continuar a jogar em clubes de pequena dimensão e fazer aquele estágio no Benfica, optei por deixar de jogar e fazer o estágio. Eu não tinha os meios que me permitissem chegar onde queria enquanto jogador.
Que meios?
Estava muito sozinho. Sentia-me um bocadinho desamparado, não tinha família próxima.

© João Silva José Morais, no dia da entrevista a Tribuna,
Não voltou a ter contacto com os seus pais?
Ia tendo. O meu pai voltava sempre para Angola, até aos últimos dias dele viveu sempre lá, nunca regressou a Portugal definitivamente, só vinha no período de férias. A minha mãe faleceu tinha eu entre nove e dez anos. Durante muitos anos pensei que ela tinha falecido por causa de qualquer coisa relacionada com a guerra. Só bem mais tarde descobri que faleceu por doença, mas nunca soube qual. O meu pai faleceu quando eu já estava a treinar na Alemanha.
Estava a dizer que aproveitou a oportunidade de ir estagiar para o Benfica.
Sim. Fui entrevistado pelo Nené, um dos meus ídolos (risos). Acabei por ser aceite e o grupo de treinadores da altura era fantástico. Era o Arnaldo Cunha, o João Santos, o Bastos Lopes, o Zé Henrique, o José Paisana e o Nené. Estive lá 10 anos.
Tanto tempo?
Estive dois anos a treinar o Benfica B, mas no total estive 10 anos no Benfica, entre 1991, quando terminei o curso, até 2001. Costumo dizer que um dia vou lá parar como treinador e já conheço os cantos à casa (risos).
Ficou a viver onde?
O meu pai tinha comprado um apartamento perto da Amora, do outro lado do Tejo, eu é que usava esse apartamento. Já tinha carro. Mais tarde comprei uma outra casa, no Fogueteiro. Depois mudei para Benfica, porque as condições foram melhorando.
E no meio disso tudo a vida pessoal? Primeira namorada, lembra-se?
(risos). A primeira namorada foi um amor de verão, lá na Praia de Vieira. Eu tinha uns 13, 14 anos. Ela chamava-se Natalie e era filha de uns franceses que eram amigos dos meus tios. Depois casei com a minha primeira mulher. Ela nasceu em Cabo Verde e conhecia-a numa festa de estudantes numa discoteca perto do Largo do Rato, em frente à casa de chá das Vicentinas. Chama-se Saída, é mãe dos meus dois filhos rapazes, Renato e Tomás. O Renato tem 21 anos, joga no Palmense e está a estudar Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade Católica, e o Tomás vai fazer 19 anos e está estudar fisioterapia. Estive casado 10 anos com a Saída.
O que mais o marcou nos dez anos que passou no Benfica?
O nascimento dos meus filhos obviamente. Do Benfica tive muitas recordações, porque foram 10 anos vividos com grande intensidade. Primeiro, a relação com o grupo e a forma de trabalhar, o meu próprio desenvolvimento dentro do clube, a minha passagem em todos os escalões de formação e o trabalho que fui desenvolvendo. Os momentos do próprio clube.
Passou por uma série de presidentes…
Passei pelo João Santos, Manuel Damásio, Vale e Azevedo e Manuel Vilarinho. Depois do João Santos foi sempre um período muito atribulado, muitas dificuldades na organização, dificuldades financeiras, estive aos quatro meses sem receber…
Como fazia nessas alturas?
Eu passei por muitas dificuldades enquanto miúdo. Lembro-me de uma vez dizer “nunca hei-de contar o dinheiro para viver”. O que eu vivi em casa da minha “tia” era sempre “não temos para isto, não temos para aquilo”. O meu pai pagava uma mensalidade à minha “tia”, mas havia momentos em que ele não conseguia pagar. E eu sentia-me na obrigação de trabalhar em casa para contribuir e de alguma forma compensar. O eu querer fugir de casa, esta minha revolta em determinados momentos, de me sentir menos querido do que um filho, tinha a haver com estes aspetos. Porque eu tinha sempre de fazer muitas coisas em casa. E se calhar até era natural fazer, só que na altura era criança e não entendia a coisa assim, entendia que eu tinha de ir jogar e não podia estar dependente de lavar a loiça para poder estar a horas na concentração. Entendia que não gostavam de mim tanto como deveriam gostar e por isso é que tenho de fazer estes trabalhos e ajudar a limpar a casa. Hoje já vejo de uma perspectiva diferente.
Como?
Uma perspetiva positiva como tendo sido parte da educação, da aprendizagem. Aquilo que sou tem muito a ver com este processo pelo qual passei. Isto para dizer que quando fazia uma coisa que achava que não era suficiente, a minha tendência era buscar outras alternativas. Então eu na altura terminei o curso, treinava no Benfica, ganhava algum dinheiro, mas fui dar aulas e ganhava outro dinheiro; entretanto fui convidado para dar uma cadeira de metodologia do treino desportivo e futebol como professor assistente na universidade Lusófona, e ganhava mais algum. Mas dar aulas não era propriamente a minha vocação e pedi para ser destacado para ser o selecionador regional da Associação de Futebol de Lisboa. Portanto, quando não recebia de um lado, tinha do outro e fui acumulando.

© D.R. José Morais com 18 anos, quando jogava no U. Leiria
Desses anos no Benfica quem foram as pessoas que mais o marcaram?
O Nené, um amigo. O José Paisana, um amigo. No fundo, aquele grupo de treinadores. Todos me marcaram por diversas razões. Mas uma pessoa que me marcou muito e que faleceu inesperadamente foi o Dr. Alberto Silveira, que foi quem renovou pela primeira vez o meu contrato. Fez-me um contrato por três anos, a ganhar já um bom valor na altura. Era uma pessoa que eu adorava.
E jogadores que tenha detetado logo e que tinham grande valor?
Nesse período houve vários, mas o que mais se projetou foi o Maniche e o irmão dele. Houve outros que tinham tudo para singrar mas que não foram tão longe. O Pêpa, o próprio Mantorras acabou por estar ali pouco tempo.
Sai do Benfica e vai para o Estoril Praia. Porque sai do Benfica?
Na altura eu treinava a equipa B do Benfica e o Estoril Praia estava na mesma divisão e estava quase a descer. Eu tinha vontade de treinar uma equipa no futebol profissional. Era um objetivo. E o Mauro Aires perguntou-me se estava interessado em treinar o Estoril Praia.
É o seu primeiro embate com a realidade do futebol sénior profissional. O que foi mais complicado?
Tudo foi bom, porque já na altura o meu sentido de organização era grande. Eu gosto de desafios, gosto de ver coisas a crescer. A intenção era tentar fazer a equipa subir. Tinha esse projeto. Era um grupo bom, interessante. Correu bem. O que não correu bem foi o tempo, porque era suposto estar lá dois anos e fiquei quatro meses.
Porquê?
Porque na altura o clube foi “comprado” pelo José Veiga, ele ficou com a maioria das ações do clube, e resolveu trocar de treinador e de administração. Não foi nada pessoal, disse ele.
Não tinha alternativa?
Não. Foi o meu primeiro choque com a realidade do futebol. Foi dizer “e agora?”. Estava casado tinha já os dois miúdos. Nunca me passou pela cabeça que pudesse acontecer uma coisa daquelas. Eu via aquele projeto como forma de subir na carreira, umas escadas. Deixei o clube em 4º lugar. Fiquei sem ordenado, tinha deixado já as aulas nas escolas e a AFL, porque tinha optado por uma via profissional. Fui para casa pensar na vida.
E depois?
Telefona-me um indivíduo que eu conheci no Benfica, um agente búlgaro que morava na Alemanha, Vencislav Mitov. Ele era responsável por um clube da III divisão na Alemanha, o Westfalia Herne. Pediu-me para ir terminar a época lá, porque tinham tido um desentendimento com o treinador. Eu disse: “Óptimo, quanto é que me podes pagar?”. O Estoril tinha-me pago só até final de outubro, apesar de eu ter dois anos de contrato. Na altura ainda falámos em fazer um acordo, mas pensei: “Acordo? Tenho dois filhos, vim para aqui com uma expetativa…Não posso entrar num acordo do género pago até amanhã e arranjo-te um clube. Sei lá quando é que arranjam clube”. Aquilo foi para tribunal e eu não sabia quando é que recebia. Ele diz-me que não podia pagar muito, mas garantia-me casa, transporte e ajudas na alimentação, mais 2000 euros/mês. Era melhor que nada. Como não sabia muito bem o que fazer, era uma aventura fora. Fui.
Como foi o impacto num futebol diferente, num país com uma língua diferente?
Inglês eu falava, mas alemão não percebia nada. Alguns jogadores falavam inglês, outros eram de origem turca e só falavam alemão. Fui estudar alemão para conseguir melhorar comunicação.
Foi sozinho ou com a família?
Fui sozinho. Foi difícil porque os miúdos eram pequenos, mas eu também sabia que não havia outra alternativa.
Acabou a temporada e depois?
Entretanto mudei de clube fui para o Schalke 04. Isto porque eu trabalhei um bocadinho com o Jupp Heynckes, no Benfica, antes de ir para lá o José Mourinho.

© D.R. O pai de José Morais
Quando conheceu o José Mourinho no Benfica houve logo empatia?
Houve. Primeiro porque eu olhava para o treino dele e tinha tudo a ver com os meus sonhos, de organização, muita objetividade e a dinâmica que ele veio introduzir era a que eu gostava. Já na formação do Benfica eu buscava muito a influência dos holandeses, do método, a organização dos exercícios, exercícios com bola, objetivos em termos de espaços reduzidos… Quando ele veio trouxe tudo isso da influência que teve no Barcelona, não só do Bobby Robson, mas da dinâmica do próprio clube uma vez que o Cruijff, tinha uma grande influência, e depois do facto de ter trabalhado com o van Gaal… Havia muitos exercícios que ele trouxe e que eu adorava, adorava o treino que ele dava.
Essa ligação no Benfica foi o que levou a que depois fosse trabalhar com ele?
Sim. Quando ele vai embora, era suposto ir trabalhar no dia seguinte para o Sporting e era suposto o Mozer ir com ele, mas lembro-me de estar no balneário e ele virar-se para mim: “Eu tenho um lugar para ti, porque não tenho preparador fisico e tu podias fazer essa função. Queres vir?”. A minha primeira reação foi dizer logo que sim. Depois comecei a pensar: no Sporting todos sabem que sou treinador das camadas jovens do Benfica, toda a gente sabe que eu não sou propriamente preparador físico, sou treinador. O Inácio tinha sido campeão, se eu chego ali e acontece qualquer coisa, com a nossa mentalidade vão dizer logo que a equipa está mal fisicamente. Fui ter com o Mourinho, expliquei-lhe isto e disse: “Não quero que vás passar por situações difíceis por causa da minha inexperiência como preparador físico. Se calhar é melhores levares alguém com mais experiência”. Eu estava a falar contra mim. Ele olhou para mim, apontou-me o dedo naquele jeito dele e disse: “És um gajo sério. Um dia ainda vamos trabalhar juntos”.
Já lá vamos. Estávamos no Schalke 04.
Sim, o responsável pela formação do Shalke 04, Helmut Schulte, que ainda hoje é meu amigo de casa, viu a minha equipa e veio falar comigo, perguntou-me se estava interessado em trabalhar para eles, até porque sabiam do meu passado no Benfica e que tinha trabalhado com Jupp Heynckes, que era uma referência na Alemanha. Queriam que eu trabalhasse não como treinador principal, mas na formação, transmitindo junto dos outros treinadores a experiência do trabalho mais latino. E que com o tempo podia até chegar a treinador principal. Ofereceram-me um ordenado, que não era muito alto, mas melhores perspetivas de futuro. Disse que estava interessado. E fui.
Mas durou pouco tempo.
Sim, em dezembro surgiu a oportunidade de ir como treinador principal para o Dresdner SC, que era uma equipa que jogava na II B alemã.
Os seus filhos reclamavam muito a sua presença?
Eu só hoje é que vejo, e nos anos mais recentes é que me apercebi, como pai, que há várias formas de ser pai e eu não aprendi a ser um bom pai. Nem sei como explicar. Mas eu hoje sei a importância do que é ser pai, sei o que é ser pai, sei a importância que um pai tem no desenvolvimento da criança, compreendo todos os aspetos onde posso ter influência positiva ou negativa no desenvolvimento das pessoas, coisa que na altura não tinha consciência, nem conhecimento. Na altura não sabia e nem sequer me passou pela cabeça que eles pudessem sentir a minha falta, o meu pensamento era: “Ah, eles são miúdos”.
Como correu a experiência do Dresdner?
Eu fui para o último classificado da liga, condenado a descer. O que eu pudesse fazer de bom, servia para minha experiência. Não havia uma expetativa muito grande.
Não fica lá porque?
Fiquei de janeiro até ao final da temporada. A equipa estava numa divisão inferior, o que pagavam não era muito e eu tinha a possibilidade de vir para Portugal.
O que ficou para si desses dois anos na Alemanha?
A língua, um país grande, organização no futebol, público nos estádios, sempre com ambiente de festa.
Ficou-lhe algum hábito?
Não propriamente o hábito, mas pela primeira vez comecei a beber weiss beer, a cerveja branca mais grossa deles. Nunca fui muito de beber cerveja, mas ficou-me isso, assim como o bratwurst, aquela salsicha enorme, gosto. E outra coisa que também comecei a beber lá pela primeira vez, no inverno, o vinho quente.
Vem para o AC. Viseu. Fica a viver em Viseu?
Sim, num hotel. Mas ia a lisboa com frequência. A época correu bem, mas era um clube também com muitas dificuldades, sem dinheiro, com muitas dívidas aos jogadores, um Ac. Viseu num momento difícil. Tão difícil que um ou dois anos depois creio que por dívidas, a equipa acabou desaparecer.
Algum episódio marcante?
A equipa estava em zona de rebaixamento quando eu cheguei e termos conseguido chegar ao 4º lugar, estarmos quase com possibilidade de subir, foi marcante. Era gente interessante, muito humilde, trabalhadora e com grande dignidade.

© D.R. Os três filhos de José Morais
Acaba a época e vai para os Açores, treinar o Santa Clara, que tinha baixado da I para II divisão. Porquê?
O Santa Clara ia fazer uma reestruturação no plantel porque tinha dívidas grandes, jogadores a ganhar muito dinheiro. Ia desfazer-se de praticamente todo o plantel e queria um projeto novo. Fui para os Açores para esse projeto, que era de dois anos, mas que acabou repentinamente. Fizemos bons jogos na pré-época e as pessoas passaram a entender que os objetivos tinham de ser já de subida imediata. O plantel nunca conseguiu estabilidade para estar em posições muito acima e acabei por ser despedido antes de dezembro.
Tinha alguma alternativa?
Na altura estava num processo um bocado conturbado de várias coisas. O meu pai tinha falecido, depois faleceu o filho da minha “tia”, que eu considerava como um irmão. Entretanto eu estava a divorciar-me. Depois, as próprias dificuldades com a equipa e com as intenções da direção… aquilo começou a ir por um caminho que não era propriamente aquilo que eu queria. Não consegui ser suficientemente persuasivo, mas o presidente, Luciano Melo, não era uma pessoa fácil. Ele não se metia muito no trabalho técnico, mas ao nível da elaboração do plantel era muito o que ia na cabeça ele. Saí, tinha dois anos de contrato, fizemos um acordo, eles iam pagar-me mensalmente, por isso não havia grande stress. Eu tinha na equipa o Garba Lawal que me tinham trazido através de um agente que estava na Suécia. E esse agente viu o trabalho que estava a ser feito e achou que eu poderia treinar o Assyriska, da Suécia. Perguntou-me se estava interessado e fui para lá.
Esteve lá uma época apenas. Gostou?
Gostei. Fiquei perto de Estocolmo. Gostei da organização deles.
Não foi lá que conheceu a sua mulher? Ela é sueca, não é?
É, mas não foi lá; conheci a Sandra quando estava nos Açores. Ela trabalhava numa agência de viagens, nos Açores. Ela própria ficou admirada de eu ir para a Suécia.
Tem filhos com ela?
Tenho uma menina de oito anos, a Sophie.
Já namoravam quando foi para a Suécia, em 2005?
Já. E ela decidiu acompanhar-me. Tivemos a Sophie só em 2010.
Como é que vai parar a seguir ao Al-Faisaly da Arábia Saudita?
Surgiu através de um agente tunisino que trabalhava com um agente árabe. Esse agente tunisino conhecia alguém que conhecia o clube sueco onde eu estava. Fez-me uma proposta para ir para essa equipa que tinha vindo da II divisão para a I.
Tinha vontade de sair da Suécia para ir para a Arábia Saudita?
Tinha. Eu na altura estava a morar em Malmö e já num processo de integração dentro do clube de lá, porque os diretores tinham gostado do meu trabalho no Assyriska e queriam que eu ficasse no clube, sendo que, quando houvesse oportunidad,e eu pegaria na equipa. Eu já estava a ajudar o treinador que lá estava, tinha ido ver jogadores ao Brasil, como scout. Ganhava algum dinheiro, mas quando surgiu a Arábia Saudita pensei “Porque não?”. Ia ganhar 12.000 dólares/mês e no Malmö ganhava 2000€. Fui.
Qual foi o primeiro impacto?
(risos). Aí sim, foi duro. Acho que foi dos momentos da vida onde me senti menos eu. Não me reconhecia.
Porquê?
Porque me tornei excessivamente agressivo nas minhas intenções. Eu não levei ninguém, fui sozinho, não falava a minha língua praticamente, as dificuldades de comunicação eram grandes, as casas lá são muito fechadas, não têm janelas, não andas cá fora porque está muito calor. Pessoas vestidas com aquelas túnicas, as abaias, não conheces ninguém fora do teu meio de trabalho. Uma vilazinha que não tinha nada. A vida era ir a um café com alguém do clube jogar snooker, depois voltava ia para casa, comia, dormia e treinava.
Como é que fazia com as refeições, cozinhava?
O clube tinha um cozinheiro que fazia almoço e jantar e eu aproveitava. Hoje em dia já tenho uma perspetiva diferente, já me organizo de outra forma e como mais em casa.
Então o choque com a Arábia Saudita foi grande.
Foi, eu tinha a mala pronta atrás da porta. Acho que nunca cheguei a desfazer a mala. O meu sentimento era este: no dia a seguir vou-me embora.
O que mais o chocou?
Foi tudo muito diferente. As rezas, o parar o treino porque havia uma reza. A cultura, a mentalidade deles, gente que não estava habituada ao mesmo ritmo à mesma intensidade e dinâmica, era tudo muito mais devagar. Não estava habituado àquilo. O Al-Faisaly era um clube difícil de adaptar, mas pouco a pouco fui sentindo as pessoas, são pessoas de bom fundo, não faziam as coisas por mal, tinham era uma mentalidade diferente.
A sua mulher foi lá ter consigo?
Foi, mas só quando eu já estava no Al-Shabab. Ela adorou (risos). Mas o Al-Shabab é em Riade, que é uma cidade onde há mais coisas.
A sua mulher sendo sueca, loira de olho azul, não sofreu nenhum tipo de discriminação?
O bom da Arábia Saudita é que isso não se vê muito porque tens de andar tapada e ela andava com a abaia, achava imensa graça, não se importou, tomou aquilo como uma experiência diferente.
Como é que muda para o Al-Shabab?
Quando eu estava no Al-Faisaly ganhámos 4-1 ao Al-Nassr que é um dos grandes de lá, na altura treinado pelo Artur Jorge. Depois ganhámos também ao Al-Shabab. a equipa jogava bem e o xeque e dono do Al-Shabab, na substituição do treinador, entendeu que devia ser eu o novo técnico. Mas o clube onde eu estava não me queria deixar sair. Só que entretanto uma das coisas que me meteu confusão e me deixou fora de mim foi que eu tinha marcado ir passar o Natal a casa e na semana antes, o calendário dos jogos mudou e marcaram jogos na altura do Natal e Ano Novo. Passei-me da cabeça. Disse que não queria saber daqueles jogos para nada, que ia para casa. Queria marcar bilhete, mas não tinha o passaporte, pedi-lhes o passaporte. Eles não queriam dar o passaporte e eu disse-lhes: “Se não me derem o passaporte, não vou dar o treino”. E não fui. Fiquei em casa e eles lá todos à minha espera. O presidente ligou-me e prometeu-me que me dava o passaporte mas eu tinha de prometer que ia dar o treino. Nessa altura já o Al-Shabab e o Al-Nassr estavam em contacto comigo.
Mas conseguiu passar o Natal em casa ou não?
O presidente disse que me deixava ir a casa, mas eu tinha de prometer que voltava numa determinada data. Quando vou para casa, os do Al-Shabab telefonam-me a dizer que eu não podia voltar naquela data e que voltava só quando eles dissessem. Volto para Riade. Os do Al-Shabab vão-me buscar ao aeroporto, põe-me no hotel e dizem: “Agora ficas aqui, depois a gente já passa”. Não apareceu ninguém até às 10 da noite. Deixaram-me de manhã até às 10 da noite sem dizerem nada. Eles disseram para não me preocupar que estavam a tentar resolver a situação. Demoraram três dias. Vieram ter comigo novamente e fizemos contrato até final da temporada.
Era um clube melhor.
Muito melhor. Era em Riade, era um clube com uma dimensão diferente, com outra capacidade financeira.
Não continua porquê?
Porque na Arábia Saudita hoje é uma coisa e amanhã é outra. Para eles a novidade é importante. Agora és novidade, mas no próximo ano já não, já tem que ser outra novidade, eles funcionam muito assim.
Ainda tem uma passagem pelo Al-Hazm.
O Al-Hazm é um clube que é da terra do pai do presidente do Al-Shabab. Quando termino a temporada no Al-Shabab, esse clube estava quase a descer de divisão e ele pediu-me para ir organizar o clube da terra do pai dele. Era um clube que tinha um presidente nomeado, mas era ele que patrocinava e pagava. Pagou-me um bom dinheiro, ainda mais do que recebia no Al-Shabab para ir para lá.
Quanto tempo?
Fiquei lá seis meses.
Não aguentou mais?
Era no interior e tinha um presidente que, digamos assim… não jogávamos no mesmo lado. Uma vez mandou vir à experiência um guarda-redes para o clube. Ele e o treinador de guarda-redes, que era tunisino, sabiam que vinha um jogador novo para o treino mas eu não sabia. Quando chego pergunto quem é e dizem-me que foi o presidente que mandou. Mas o presidente manda um jogador vir treinar e não me diz nada? Saio do campo, nem digo nada ao treinador de guarda-redes, vou direito ao gabinete onde ele estava. Ele que estava ao telefone, viu-me entrar, peguei no computador que estava na mesa ao lado dele, atirei-o para o chão e disse-lhe: “Mas você pensa que eu sou o quê aqui?”. O homem ficou parado. Saio dali a deitar fumo e vem o treinador de guarda-redes que era tunisino e falava árabe, que eu não percebo nada, ver o que se passava. Eu passo por um dos meus adjuntos, o Amunike que tinha jogado no Sporting, e digo-lhe: “Eh pá, Emanuel eu vou dar cabo dele” O homem entretanto ficou fora de si, achou aquilo uma afronta e ligou ao xeque que me tinha posto ali, a dizer que eu tinha feito isto e mais aquilo, mas não contou a história toda. Entretanto, o presidente pediu para ir ter com ele de carro a Riade, para fazer 400 quilómetros de carro e ir ter uma reunião com ele. Fui. Contei-lhe o que se tinha passado, mas ele disse-me para ter paciência que não era fácil arranjar gente para tomar conta daquele clube, que não era de hoje para amanhã que ele podia arranjar presidentes e diretores para tomarem conta do clube, para eu ter paciência. Mas eu disse-lhe: “É assim, o presidente do Al-Hazm tem uma forma de agir que não gosto. Se digo que quero o jogador A, ele quer o B, tem lá os negócios dele, e eu assim não consigo funcionar. E esta questão do guarda-redes que mandou vir do Kuwait para treinar nas vésperas de um jogo importante, sem falar comigo? Não dá. Se quiseres, pagas-me e eu vou-me embora”. O gajo falou com ele e eu fiquei mais uma semana.
E?
Fizemos o tal jogo importante, empatámos 1-1, em casa. A equipa estava em 6.º lugar da tabela, nunca tinha estado tão bem e ele no final do jogo na conferência de imprensa, diz “Infelizmente o nosso treinador não quer continuar connosco e vai-se embora, de maneira que também queremos agradecer-lhe”. Assim, à frente das câmaras de televisão. Foi assim que fiquei seis meses. A minha mulher tinha ido para lá um bocadinho antes porque se estava a aproximar a altura do Natal e viemos juntos para o Dubai; passámos lá o Natal e o fim de ano.
Depois vai parar à Tunísia.
Fico seis meses sem trabalhar e começo a temporada na Tunísia, no Stade Tunisien.
Outra realidade a Tunísia.
Sim, outra realidade completamente diferente para melhor. Mais aberta, com sítios fantásticos para visitar.
Tem alguma história engraçada que nos possa contar?
Tenho várias, mas a única que por acaso nem é engraçada, foi que passados dois jogos, recebo uma proposta para ir para o Iémen. Depois da pré-época na Tunísia, fizemos dois jogos bons, já não sei se ganhámos ou empatámos, mas foram dois jogos difíceis para a equipa, face ao momento difícil por que estava a passar, uma equipa sem muito dinheiro, com jogadores que também não eram grande coisa, mas o futebol que apresentámos logo no início despertou a atenção. Entretanto, ligaram-me do Iémen e fazem uma proposta para ganhar quatro vezes mais. Numa paragem do campeonato, pedem-me para viajar para o Iémen. Fui, acerto o contrato e quando volto e digo que me quero ir embora, eles que sabiam que eu tinha ido ao Iémen já tinham feito o seu trabalho. Vem escarrapachada num jornal a minha caricatura com um saco, tipo o saco do Tio Patinhas, com insinuação de que eu só queria saber do dinheiro (risos). Mas quando voltei o clube estava numa revolução grande, o presidente não se tinha recandidatado, já era velhote, veio uma direção nova que falou comigo, mas eu disse-lhes: “Eh pá, eu dou-vos 30 mil dólares, nem mais, nem menos. Se querem, querem, se não querem eu vou-me embora na mesma”. Eles: “Não, não”. Fui-me embora.
Isso deu tribunal?
Puseram-me em tribunal. Mas isto tudo para dizer que quando vou para o Iémen passado uma semana, rebenta uma bomba na embaixada dos EUA. Uma confusão, mortes, a minha mulher que estava comigo só me disse: “Amanhã quero ir embora e tu não vais ficar aqui”. Já andávamos nós a ver casas e tudo. Ela até já tinha sido convidada para um casamento nesse espaço de tempo. Rebentou a bomba e ela quis ir embora. Eu fiquei lá ainda mais algum tempo.

© João Silva Tribuna
No Iémen foi uma experiência diferente porque foi treinar a seleção.
Sim foi uma experiência completamente diferente. Em termos de adrenalina prefiro clube porque é o dia-a-dia, vives com mais intensidade a competição.
Tirando a explosão, no Iémen o que mais o marcou?
Foi o ter ficado preso no elevador num edifício da federação (risos). Foi o mais marcante.
Ficou lá quanto tempo?
Não foi muito tempo, mas foi o suficiente para tu veres a vida a passar. Aquilo são dois pisos. No primeiro piso está o gabinete do selecionador e, no rés-do-chão, havia uma sala de reuniões onde eu queria fazer uma reunião com o pessoal. Entrámos no elevador para descer e o elevador para, sem corrente.
Quem é que estava dentro do elevador?
Estava eu e mais dois elementos da equipa técnica. O elevador não era muito grande. Aquilo pára e agora o que é que fazemos? Ninguém se mexe, estivemos ali há uns cinco minutos e eu começo a puxar a ver se porta abre. A porta abre um bocadinho mas depois tinhas um pequeno espaço para poder sair para o piso de baixo. A decisão era: ficas ou sais. Mas se sais e de repente o elevador volta a ter corrente (não sabes quando é que a corrente vem)? Um dilema. Mas quanto mais tempo passava, mais tu começas a pensar, já passou algum tempo, a luz deve estar a vir… Foi horrível.
Resumindo quanto tempo é que lá ficaram?
Uma hora.
Ninguém arriscou sair?
Ninguém arriscava sair e eu também tinha medo. Passado uma hora fui o primeiro a sair, disse: “Bem, só há uma forma de sair daqui. É rápido”. Foi horrível. Tentar meter o corpo num pequeno espaço e descer. E depois, outro dilema. Meto primeiro as pernas ou a cabeça e vou de mergulho? Porque se a luz voltasse, aquilo andava e podias ser cortado ao meio. Então o que é que me ocorreu: se vem a carga e eu meto primeiro as pernas, o elevador traça-me e eu vou à vida. É melhor ir de cabeça, porque se a cabeça passar, a probabilidade é de me apanhar só as pernas (risos).
Nessa altura já tinha feito jogos pela seleção?
Não cheguei a fazer nenhum jogo oficial pela seleção, sai antes. Estávamos a preparar a Taça do Golfo que era em janeiro, eu fui para lá em agosto e sai em outubro.
Veio embora porquê?
Porque a minha mulher tinha vindo embora e, pelo que fui vendo, não me pareceu um país com estabilidade para conseguir fazer alguma coisa.
Continua a viver um clima de guerra, com milhões de pessoas a morrer de fome…
…Falando mais a sério, duas coisas que me impressionaram naquele país, uma é o nível de pobreza em contraste com a riqueza de algumas pessoas ligadas ao presidente, ao governo. O presidente da federação era riquíssimo assim como as pessoas que estavam perto dele. Mas tudo o que era motoristas eram pobres. Quando eu saía, era só gente a pedir nas ruas, dava dinheiro às pessoas. E outra coisa que se calhar tem a ver com o estado em que as pessoas vivem, é que eles mastigam khat, a partir do meio dia até adormecerem. É uma planta, eles parecem ruminantes a mastigar aquilo. Começam a mastigar ao meio dia e já não dá mais para trabalhar porque entram num estado… Eles dizem que aquilo relaxa e que trabalham melhor. Não trabalham nada, estão é relaxados. Só dá para trabalhar de manhã. E o impressionante é que eles gastam todo o dinheiro que têm a comprar aquilo. Famílias inteiras a mastigar aquilo. É uma coisa impressionante, nunca tinha visto nada assim. Mas tenho outra história do Iémen.
Conte.
Havia uma seleção do Iémen que tinha feito muito bons:resultados num Campeonato do Mundo de Sub 17. Tinha feito a vida negra a Portugal e ao Brasil. Eu agora não me recordo dos resultados. E quando cheguei em 2007 disse para mim, este Mundial dos Sub 17 foi há uns quatro, cinco anos, deixa lá ver onde andam esses jogadores. Vou buscar a lista dos jogadores, começo a tentar ver onde é que estavam esses jogadores, onde e qual é o meu espanto quando me começam a dizer que alguns jogadores já não jogam. Mas onde é que eles estão, perguntava eu, foram para fora? Até que me explicaram que os jogadores tinham dois passaportes, o desportivo e o normal. Ou seja, faziam passaportes para jogadores muito mais velhos. Nesses países olhas para eles e parece que todos têm mais ou menos a mesma idade e então para esse Campeonato do Mundo de Sub 17, foram jogadores que tinham 26 e 27 anos. Portanto, muitos já tinham demasiada idade para fazer parte da selecção e outros já não jogavam.
Segue-se a Espérance de Tunis.
Que aparece no momento em que começo a dizer isto não lembra ao diabo, tenho de me ir embora daqui. O meu primeiro jogo pelo Espérance de Tunis foi para a Liga dos Campeões Árabes. Quando cheguei eles já tinham jogado a primeira eliminatória em casa contra o Al Ittihad, da Líbia. Tinham empatado 0-0 em casa e fomos jogar a segunda mão, fora. Estavam 100 mil espectadores e o presidente do clube era o filho do Gaddafi. Só me lembro de um estádio igual ao da Luz na final do Campeonato do Mundo dos Sub 20, estava cheio, à pinha. Vem o filho Gaddafi a meio do campo para cumprimentar os árbitros (risos), foguetes e eu: “Isto vai ser uma coisa do outro mundo”. Por obra e graça do Espírito Santo, empatámos o jogo 0-0, fomos a penáltis e nos penáltis ganhámos. Ganhámos e passámos para as meias-finais. Mais à frente apanhámos outra equipa, o Ismaeli, mas entretanto a equipa foi fazendo bons resultados, fomos sendo sempre os primeiros, até que num célebre dia recebo a chamado do Zé Mourinho.
[No domingo, dia 6, esta entrevista continua, já com Mourinho na história]

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Noticia do Expresso. Coluna Tribuna por João Silva

 

 

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